23 de jun. de 2010

Falanges

-A vida é muito cruel - Disse como uma constatação dramática, de quem procura discordância.
-Já está acabando - Tentou consolar, num tom amigável, com um gosto de fim de viagem longa.
-O que, a vida? - Encenou um espanto afetado
-Não, boba, essa dor.
-Ah... - Fingidamente desolada pela explicação óbvia do que ele quis dizer.
É, a vida. Ou praticamente isso. Mas preferiu não dizer.


Talvez seja melhor que ela continue. A vida é cruel, não apenas essa dor.
Às vezes tenho a impressão de que ao longo da vida temos uma meta mínima de sofrimento a cumprir. Alguns excedem a cota, outros tentam engana-la fingindo que a vida pode ser sempre feliz. Talvez também haja uma meta mínima de felicidade, algumas pessoas a ultrapassam sem esforço, outras apenas a cumprem por um forçar do ciclo vital, com essas felicidades que o sofrimento natural insistem em diluir, ou que esses não apreciam tanto quanto a dor. Acontece.
Talvez seja melhor que ela continue. A dor. Se ela fizer parte do meu mínimo sofrimento inevitável, o que pode acontecer depois que essa dor passar? Pelo menos é algo fisicamente tolerável, por enquanto. Mas se passar ou eu me acostumar, como faz a vida pra dar conta dos pontos do sofrimento?
Quer dizer, eu não acho que já tenha sofrido o suficiente por uma vida, para só ter ventos bons soprando de agora em diante. Pelo contrário, tudo anda bem, administravelmente bem.
Pode ser que a cota seja anual, ou por período da vida, sofrer bastante antes não te impede de sofrer depois. Ou ainda ,a pontuação de cada acontecimento varia de acordo com a nossa impressão dele, se foi muito triste, se foi muito feliz.
Sei que eu tenho medo do que pode vir estragar tudo isso.


Estou com cãibras de tanto me segurar no fio da vida, tentando não me perder na loucura.

11 de jun. de 2010

Anatomia

Bem vindos ao departamento de anatomia humana.
É aqui onde estão os cadáveres, usados para estudo e formação acadêmica de profissionais, e portanto merecem respeito, não brinquem com as peças nem chamem-os de 'presuntão', eles não gostam. Nem vocês vão gostar de lembrar dos corpos quando estiverem almoçando uma carne cozida ou comendo um presunto.
Existem três formas de chegar cadáveres para o departamento, indigentes do IML, que, se não forem reconhecidos por alguém da família são doados às universidades; por doação em vida, quando a pessoa registra num documento que deseja que seu corpo seja usado para estudo depois da morte, porém a família precisa concordar com a doação quando a pessoa vier a óbito; e a terceira maneira, alunos bagunceiros que vem ao laboratório brincar e tirar foto dos cadáveres. ah, é proibido fotografar.
Não precisam ter medo, lá não tem nenhuma alma viva além de nós. Os guardas que fazem a ronda noturna desse departamento já disseram que no meio da madrugada as luzes se acendem e os corpos fazem um forró todas as quartas, mas nunca foi relatado nenhuma festa durante a manhã, então não teremos transtornos. Quase não temos corpos femininos aqui, a maioria são de homens. As meninas que quiserem vir ao forró hoje a noite estão convidadas, mas só é permitido entrada de pessoas mortas.
O formol usado na concervação é muito volátil e tem cheiro forte, pode fazer arder o nariz e os olhos, quem se sentir mal, fique à vontade para seir e respirar um pouco de ar puro.

Podemos descer ao laboratório.



baseado em fatos imaginários
hahahah